Historicamente falando, anarquismo é parte do socialismo e, como tal, defende que os produtos do trabalho devem ser do trabalhador. A diferença entre marxistas e anarco-comunistas nesse sentido é que, para marxistas, a quantidade de trabalho define o quanto o trabalhador receberá; já o anarco-comunista defende que o trabalho de uma pessoa depende do trabalho de todos, logo é impossível saber quanto cada um deve ganhar e tudo deve ser de todos.
Por isso, o chamado “anarco”-capitalismo (ancap) não pode ser uma forma legítima de anarquismo. É, sim, uma forma extrema de liberalismo derivada da escola austríaca de economia (a partir das ideias de Ludwig von Mises, Murray Rothbard se torna o primeiro ancap). Porém, enquanto a escola austríaca defende a existência de um Estado que seja mínimo, porém forte e protetor da propriedade privada (leia-se ‘defensor do lucro dos ricos e do tiro-porrada-e-bomba para os pobres’), os ancap não desejam nem esse Estado mínimo, deixando que o mercado capitalista promova algum tipo de harmonia na sociedade.
Assim sendo, os ancap defendem que o trabalho das pessoas seja explorado em nome do lucro do patrão, que a terra ocupada seja alugada e a agiotagem. São defensores do laissez-faire (mercado sem regulamentos) e acreditam que a livre concorrência por si só impedirá monopólios e, assim, ninguém será poderoso demais a ponto de ameaçar o resto da sociedade. Defendem que o mercado gerará oportunidade suficiente para que todas os acordos sejam livres, voluntários. Assim, quem aceitar um trabalho desvantajoso o terá feito por livre vontade. A propriedade privada seria protegida por meio de agências de segurança.
Os problemas
A ideia de que um mercado irregulado oferecerá variedade suficiente para impedir monopólios e injustiças é improvável. O objetivo do capitalista é o acúmulo de capitais como garantia da sobrevivência do seu negócio. Assim como países acumulam força militar com o objetivo de se tornarem superpotências que ignoram os direitos dos outros países, o capitalista vê na eliminação da concorrência a melhor forma de proteger seu império econômico. Não há motivo para crer que empresas menores possam resistir por muito tempo à concorrência desleal, pois os mesmos benefícios que o fim do Estado traz para elas (fim das leis trabalhistas, fim dos impostos, etc.) também serve às grandes empresas, principalmente com seu capital acumulado para tirar proveito disso (cartéis, trustes, especulação financeira, campanhas de mídia, manipulação do mercado, fraudes, etc.).
Como cada um será responsável pela sua própria segurança, quem tiver mais dinheiro poderá formar os mais fortes exércitos particulares. O mundo dos negócios não seria diferente do mundo do crime organizado, onde cada facção criminosa faz valer sua lei através da força. As agências de segurança desse cenário não são em nada diferentes de grupos mercenários. Um truste poderia muito bem incluir sua própria agência de segurança. Nada impediria o acúmulo de terras, de maneira que os trabalhadores da região devessem pagar aluguel ou se mudar. Nesse momento, a empresa já se tornou um domínio feudal, com os trabalhadores pagando impostos ao próprio patrão. Chega ao fim a anarquia, transformada em Estados corporativos.
Conclusão
“Anarco”-capitalismo é uma ideia originada nos anos 1950 e que joga fora toda história do anarquismo como um movimento socialista. A única semelhança entre os ancap e o anarquismo de verdade é o desejo pelo fim do Estado, porém os ancap querem isso em nome da consolidação da exploração do homem pelo homem e o darwinismo social (sobrevivência do mais forte, perecimento do mais fraco). Os verdadeiros anarquistas entendem que o fim do capitalismo é necessário para o fim da dominação do mais forte sobre o mais fraco; em especial, nós anarco-comunistas entendemos a ajuda mútua como princípio necessário para a realização dos potenciais do ser humano. Cremos que uma aventura como a proposta pelos ancap resultaria num retrocesso ao estatismo, logo é algo que não nos interessa nem ao menos tentar.
Qualquer um se enamore com o “anarco”-capitalismo e pense em participar do movimento anarquista estará cometendo um equívoco. De fato, não sabemos o que alguém ganharia defendendo o “anarco”-capitalismo sem ser um rico capitalista.
PS: Nos EUA, a direita se apropriou do termo “libertário” e alguns ultraliberais brasileiros copiaram a direita americana. Na verdade, o termo “libertário” foi adotado na política por anarquistas franceses no séc. XIX, como Joseph Déjàcque. Socialismo libertário é sinônimo de Anarquismo. Sempre que usarmos a palavra libertário neste blog será em referência ao Anarquismo verdadeiro, e não insanidades como o “anarco”-capitalismo ou mesmo a escola austríaca de economia.